Hoje faz um ano que realizei um grande sonho: caminhar os quase 900 Km que separam Saint Jean Pied de Port de Finisterra, itinerário também conhecido como Caminho de Santiago.
Na verdade eu já era quase veterana quando finalmente consegui tempo pra fazer o Caminho Francês inteiro. Eu já tinha feito 3 trechos em anos anteriores e não me sentia menos peregrina que os demais, mas sempre ficava com aquela pendência de percorrê-lo inteiro pelo menos uma vez na vida. Afinal, naqueles trechos eu ia conhecendo gente que o havia começado há um, dois ou três meses, e eu ali, me sentindo minúscula com a semana que me havia proposto caminhar.
Costumo dizer que até a menor quantidade de dias no Caminho é maravilhosa, mas fazê-lo inteiro é outra sensação. É como viver uma vida inteira pelo Campo de Estrelas, o que inclui cuidar bem de você, relacionar-se com os demais e deixar-se maravilhar várias vezes por mais de um mês. Afinal, tudo isso é a sua vida naquele momento, e você vai querer cuidar bem dela. Você começa bebê, vai crescendo, se torna adolescente e chega à maturidade durante aquele período, metaforicamente falando. Muda muita coisa dentro de você e você chega diferente ao seu destino. Você até ganha um diploma, em latim, de peregrino formado pela escola do Caminho. É muito bacana!
Eu sempre acho que não voltei diferente, que não mudou muita coisa na minha vida, mas sim houve mudanças internas que a princípio são difíceis de identificar. Mas é porque eu nunca vou ao Caminho em busca de mudanças, eu sempre vou em busca de aprendizado, de paz, de novas sensações e para, dentro das minhas capacidades e limitações, superar-me. O Caminho te dá aquilo que você procura, e cada um vai receber dele o que precisa em cada momento. Esse é o segredo da sua magia.
As pessoas costumam perguntar se ele é mesmo espiritual, se acontece algum milagre depois de tanto esforço. Eu aprendi que ele é a nossa imagem e semelhança, lá você vive um espelho seu. Mas isso acontece porque ali você está longe das distrações diárias, você não tem nenhuma interferência da vida “normal”. E por isso, por estar prestando muito mais atenção em você mesmo, tudo o que acontece é resultado da vibração que você emite.
Ao longo do Caminho todo mundo vivencia muitas coincidências, e é por isso que dizem que ele é espiritual. Você não acaba imune a tudo isso, você se envolve e acaba encantado. É muito revelador passar um mês inteiro na sua própria companhia.
Passei a ser a melhor amiga do meu corpo e dar a melhor atenção a essa máquina para que ela funcionasse bem no dia seguinte, e no outro, e no outro. Acho até que éramos uma equipe de três no comando: eu querendo levar minha mente pra ver coisas bonitas e perguntando ao meu corpo se ele encarava a seguinte subida pela montanha, que era mais bonita do que ir pela estrada. Ou se pararíamos pra comer um sanduíche em um bar para dar mais combustível pra ele. Cuidamos muito bem um do outro.
Uma vez, lá pelo quinto dia de peregrinação, minhas pernas começaram a doer muito desde a canela até o joelho, e eu ia perguntando a todas as pessoas como poderia curar isso e eles me ajudavam com conselhos, pomadas e massagens. E em uns dois dias de cuidados intensivos a dor passava.
Mas o mais interessante de tudo são as pessoas que você vai conhecendo. Sendo um peregrino a pé e com tanto tempo pra falar enquanto caminha, você vai se aprofundando nos assuntos com os outros peregrinos durante o trajeto (ou nos seus próprios assuntos nos longos períodos a sós contigo mesmo). Muitas vezes nem tudo faz sentido mas, na volta pra casa e vendo as vivências de outra perspectiva, você vai juntando as peças do quebra-cabeças e entende o que viveu.
Por isso é que se sente tanta nostalgia depois do Caminho, porque ele continua sendo revelado a você ao longo dos seguintes dias, meses e anos. Eu aprendi algo com cada pessoa que conheci em cada uma das 5 vezes que fui ao Caminho, e continuo aprendendo. Essas lições parecem não ter fim.
Conquistei os quase 900 Km com meu esforço, suor e lágrimas, junto com todos os que navegaram nesse imenso campo de emoções junto comigo (incluindo minha mãe e meu pai, que vieram do Brasil pra me acompanhar nos últimos 100 Km). Comecei sem saber se ia conseguir chegar e foi necessário muita determinação e cuidado com o corpo e a mente para fazer isso possível. Presenciei a dor de pessoas que tiveram que abandonar a peregrinação porque a coluna ou os joelhos não permitiam seguir, e outros que faziam etapas de ônibus enquanto as bolhas dos pés iam cicatrizando.
Durante o percurso fui tradutora de cardápios aos gringos e dei dicas de amanheceres obrigatórios em lugares especiais. Descobri que a cerveja, depois de tanto esforço, tem um sabor muito melhor, e que ajudar a fazer o jantar a cada noite une nações inteiras. O Caminho continua sendo pra mim um mundo paralelo feito de coisas boas ao qual eu ainda espero poder voltar várias outras vezes nessa vida. Ultreya!
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